Por Flávio Gordon/Gazeta do Povo
Estou lendo A Morada do Homem: Um estudo sobre o Iluminismo, lançamento recente do filósofo e historiador Edgard Leite, presidente da Academia Brasileira de Filosofia.
Embora esteja ainda na metade da obra – sobre a qual pretendo escrever uma resenha completa ao final da leitura –, já encontrei nela uma série de preciosidades intelectuais que merecem já um comentário precoce, sobretudo pelo fato de o autor oferecer uma análise densa e bem documentada sobre um assunto que também me é muito caro, a saber: a relevância do pensamento iluminista no modo como o Ocidente contemporâneo se organiza e se enxerga culturalmente.
O tema geral de A Morada do Homem é o ataque iluminista à ideia de transcendência, tendo por consequência uma redução de toda a realidade às suas causas e manifestações materiais, naquilo que ficou conhecido, sobretudo depois da crítica kantiana, como “o fim da metafísica”.
Mas, de modo a escapar do risco de se perder em tal generalidade temática, o autor toma a inteligente decisão de abordar o problema a partir de um fenômeno particular e bem delimitado no seio do movimento iluminista: a crítica aos milagres.
Em toda a história do Ocidente judaico-cristão, os milagres foram entendidos como sinais da existência de uma ordem superior à realidade material e ordinária, a qual, de modo excepcional (mas menos raro do que o racionalismo poderia supor), invade esta última sob a forma de um mistério.
E, como se sabe, parte da agenda cultural consistiu em negar essa possibilidade, reduzindo-a a toda sorte de explicações materialistas ou a atos de ilusionismo por parte dos poderes terrenos interessados em ludibriar os fiéis.